quinta-feira, 31 de maio de 2007

Nenhum Olhar

HOJE O TEMPO NÃO ME ENGANOU.
Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se um bafo quente de lume,e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse
já morrer e começasse aqui a hora do calor.
Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de nuvens.
E o céu, daqui, parece fresco, parece a água limpa de um açude.
Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente
não ande debaixo do céu mas em cima dele;
talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu
e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu.
Um açude sem peixes, sem fundo, este céu.
Nuvens, veios ténues.
E o ar a arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele,
invisíveis.
Suspenso, como um homem cansado, ar.
Há-de ser um instante em que não se veja um pardal, em que
não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas
a observar-nos.
Chegará.
Hei-de distingui-lo no horizonte.
Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro.
Mais, sabia que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos.
De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros
hão-de parar os ramos mais finos;
num momento, hão-de tornar-se pedra.

José Luís Peixoto
in Nenhum Olhar

1 comentário:

Darkann disse...

Este sim é um dos senhores que pela escrita mais admiro...
Sim, sim... E não tem nada a ver com aquele parágrafo do '...e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro...'

looool


beijo